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Insustentável ternura

Escrevo
Sobre as tuas mãos abertas
Hoje cheias de força para agarrar o mundo Escrevo
Sobre os teus olhos bons
Pousados sobre mim
Como dois pássaros tristes
Sobre o teu corpo
Como se fosse árvore a crescer.

Escrevo
Definitivamente
Escrevo para ti
Com palavras mortas – porque todas morrem –
Com gestos que sorriem
Com espanto
Com amor
Porque hoje estou cheia de coisas
Que te quero dar
Em silêncio
Porque hoje não faço palavras
Nem risco frases –
O meu corpo cresceu
Cabe tudo cá dentro
Os outros
As ruínas deles
Os teus olhos tão grandes
Especialmente tu
Que ouves
Amas
E ris
Como uma criança
Uma grande criança de caracóis
Tu que choras
E as tuas lágrimas douradas
Também cabem dentro de mim
Oiço-as cair e são chuva
Sinto-as por mim abaixo como uma dor
E choro contigo
Anda
Não sei o que encontrei
Mas quero mostrar-te isso
Vou transfigurar as coisas para ti
Vem
Eu estou cheia de força
Tudo cá dentro anda em todos os sentidos
Como a Terra
Tu sentirias em mim se me pudesses ver
Mas não estás
E é por isso que eu escrevo para ti
A felicidade
Neste papel deserto.

Lisboa – 30/4/72
(quase a chorar)

Desenterrei este poema do meu baú – tem 40 anos! Foi dos raríssimos que sobreviveram às múltiplas mudanças de casa e de país, ao longo dos tempos. Conheço bem o sentimento… Uma parte de mim já nada tem a ver com a pessoa que o escreveu. Mas o essencial, a Presença Enternecida que jorra das palavras, essa é a mesma. Porque não tem idade, nem tempo… vive no momento presente que flui…

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